quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

A fixação por comidas saudáveis e o uso do álcool para ajudar a emagrecer são distúrbios alimentares emergentes

Você tem medo dos alimentos transgênicos? Treme só de pensar que a carne do churrasco possa estar contaminada com germes? Nas prateleiras do supermercado escolhe apenas produtos orgânicos? Essas preocupações são normais. Mas, quando excessivas, podem comprometer a rotina e o bem-estar da pessoa. Embora ainda não seja classificada como um transtorno psiquiátrico, a ortorexia - como se chama essa apreensão exacerbada em comer apenas alimentos saudáveis - vem se tornando cada vez mais frequente. Ao lado da drunkorexia - nome dado ao uso de álcool para o controle de peso -, formam a dupla de novos transtornos alimentares.

Juntas, as duas são um reflexo, ainda que indireto, das campanhas feitas pela mídia, pelas autoridades e, inconscientemente, até por amigos, por uma alimentação saudável e pela exaltação do corpo perfeito. Não que essas campanhas, sozinhas, possam desencadear o problema. "Atribuir ortorexia à onda de produtos naturais que vem sendo lançados, como se fosse sua causa exclusiva, seria o mesmo que dizer que o culto ao corpo é a única causa dos transtornos alimentares", diz a psicóloga Fernanda Kalil, especialista em Transtornos Alimentares e coordenadora de cursos de extensão em Transtornos Alimentares na Faculdade Fead, em Belo Horizonte (MG). "Todos nós estamos expostos à moda da alimentação correta e do corpo perfeito, mas nem todos ficamos obcecados com essa ideia, só as pessoas que apresentam uma tendência ao desequilíbrio", lembra. Mulheres são muito mais vulneráveis, de modo geral, e representam 90% dos casos.
Medo da comida

A ortorexia foi descrita pela primeira vez pelo médico americano Steven Bratman, autor do livro Health food junkies (em uma interpretação livre, "Viciados em comida saudável", ainda sem tradução para o português) em 1997. Entre os principais sintomas estão passar horas no supermercado lendo os rótulos dos produtos para saber se há conservantes ou outra substância considerada nociva à saúde, e escolher exclusivamente alimentos orgânicos, macrobióticos e integrais. "A pessoa começa a recusar convites para encontros sociais como almoços e jantares. Assim, evita se expor aos alimentos dos quais não pode controlar a origem", avalia Eliane Domingues Carbone, psicóloga clínica especializada em Distúrbios Alimentares. "O ortoréxico confia apenas nos alimentos que ele mesmo cozinha, porque só assim é possível conhecer os ingredientes e a forma de preparo do prato", completa. Além disso, gasta boa parte do dia pensando em comida, porque não mede esforços para comprar os alimentos que considera adequados.

Normalmente, os ortoréxicos não procuram ajuda médica. "A maioria acha sua preocupação legítima. Há pouco tempo uma nutricionista me encaminhou o caso de um paciente. Ele me contou que, durante a semana, comia apenas alimentos de qualidade, sem conservantes, sem aditivos. Mas no final de semana tinha vontade de comer uma fatia de doce. Chamava isso de 'descontrole alimentar'. Mas ele se orgulhava de ser tão disciplinado e cuidadoso com a própria saúde. Não permaneceu no tratamento", conta Fernanda Kalil. A preocupação principal dos ortoréxicos não é a perda de peso, mas manter o organismo limpo, consumindo apenas alimentos absolutamente saudáveis. Mas como ingerem uma quantidade indevida de calorias, é comum ficarem muito magros.

Dois transtornos juntos

Se os ortoréxicos não têm como foco a silhueta, o mesmo não se pode dizer de quem sofre de drunkorexia, termo de origem inglesa para denominar quem usa o álcool para ajudar a controlar o peso. É também chamado de ebriorexia ou alcorexia. "Trata-se, na verdade, de uma comorbidade. Ou seja, a associação de duas doenças que são o distúrbio alimentar e o alcoolismo", explica Maria Clara Mansur, presidente da Associação Brasileira de Transtornos Alimentares (Astral), no Rio de Janeiro.

A drunkorexia costuma acometer quem sofre de anorexia nervosa: a pessoa bebe em grande quantidade para ficar anestesiada e perder o apetite

A drunkorexia se manifesta principalmente de duas formas. A primeira está associada à bulimia. "A pessoa come demais e depois usa o álcool para provocar o vômito", descreve Maria Clara. Ou ainda bebe para se sentir entorpecida e diminuir a culpa por ter comido em excesso. "É uma forma bastante comum da doença, já que tanto a ingestão de comida quanto a de bebida são um tipo de compulsão, nesse caso".

A segunda forma da drunkorexia costuma acometer quem sofre de anorexia nervosa. A pessoa bebe em grande quantidade para ficar anestesiada e perder o apetite. É esse o perfil que está sendo representado por Renata, personagem da atriz Bárbara Paz na novela Viver a Vida, da Rede Globo. "Nesse caso fictício encontramos uma pessoa que ao mesmo tempo tem uma busca obsessiva pelo corpo e consome álcool em excesso. Ela ainda nega esses fatores e o prejuízo social, cultural e físico que a doença provoca", descreve Eliane Carbone.

"Não é possível dizer o que vem antes, a anorexia ou o vício pelo álcool", diz o psiquiatra Hamer Palhares Alves, coordenador da Rede de Apoio aos Médicos da Escola Paulista de Medicina (EPM). "Depende da situação, mas o fato é que é comum essas duas doenças andarem juntas", diz Palhares. Segundo uma pesquisa feita com 80 pacientes do Programa de Atenção à Mulher Dependente Química, do Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo (IPq/USP), 56% das mulheres dependentes de álcool ou droga em tratamento apresentavam também algum transtorno alimentar.

Sueli* começou a apresentar os primeiros sinais de anorexia nervosa aos 14 anos. Chegou a pesar 44 quilos e estava sempre insatisfeita com seu corpo. Com 17 anos ingressou na faculdade e passou a ingerir álcool em excesso. A princípio a situação se mostrou bastante conveniente já que, embriagada, não tinha fome. Mas depois de várias quedas - provocadas pela fraqueza e pelo álcool - foi levada pela mãe para iniciar um tratamento médico. Hoje ela está com 20 anos e depois de três anos usando medicamento contra a compulsão por álcool e para as crises de abstinência, curou-se do alcoolismo. A anorexia ainda está sendo tratada com acompanhamento psicológico, mas Sueli já está com 56 quilos e engordando sem a culpa que a acompanhou durante sua adolescência.

Por Ivonete Lucirio