quinta-feira, 8 de julho de 2010

Será que eu sou hipocondríaco?

Conhecidos por rejeitar as opiniões médicas, o maior desafio é convencer os pacientes de que seu mal não é físico, mas pode ser tratado

De 4% a 7% dos pacientes ambulatoriais sofrem com a hipocondria. Definida como uma interpretação errônea das sensações corporais corriqueiras, uma de suas características é a forte rejeição às opiniões médicas. Segundo o psicanalista José Atilio Bombana, coordenador do Programa de Atendimento e Estudos de Somatização da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e professor do curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae, a doença é comum a ambos os sexos e, em geral, surge entre os 20 e 30 anos de idade. Crianças também sofrem com o problema, mas para elas há esperança de recuperação na adolescência ou no início da idade adulta. O psicanalista esclarece que o quadro é fonte de angústia constante para o paciente e sua família. “O segredo é o equilíbrio: a família não deve compactuar com a obsessão por visitas médicas, exames e procedimentos desnecessários, nem ignorar o doente”. Confira a entrevista concedida à VivaSaúde.

Quais são as causas da hipocondria?
Elas ainda não foram esclarecidas precisamente, mas alguns aspectos ligados à história individual são relevantes. A valorização e o papel conferidos ao corpo e às doenças durante a vida do paciente, ou das pessoas importantes para ele, podem influenciar. Conta também a maior ou menor capacidade em lidar com as vivências físicas e psíquicas. Alguns têm recursos para pensar a respeito de si e de sua vida. Outros, nem tanto. Para estes, há maior suscetibilidade em vivenciar de modo mais concreto os fatos da vida e, assim, são mais vulneráveis às patologias, entre elas a hipocondria.

Quais são os principais sintomas?
Medo e crença de estar gravemente doente são os sintomas centrais. Os outros sinais são a iniciativa de buscar serviços de saúde repetidamente; solicitar realização de exames de modo exagerado; grande interesse por assuntos médicos e rejeição das opiniões dos especialistas. É frequente o conhecimento de variados medicamentos, embora nem sempre se faça uso deles, por temor de algum prejuízo. Sintomas de depressão e ansiedade também são comuns, bem como preocupação excessiva com o corpo, o que faz que tentem pesquisá-lo e decifrá-lo diante dos mínimos indícios.

Como é feito o diagnóstico?
Inicialmente pela constatação dos sintomas característicos, incluindo a não aceitação dos pareceres médicos. Alguma preocupação com o corpo é admissível. Mas discernir entre um traço de personalidade e uma condição claramente patológica é um desafio que só é superado pela experiência clínica. Diagnósticos diferenciais também são úteis. Primeiro, excluem-se patologias de difícil identificação; depois, deve-se dar atenção aos quadros depressivos, em que os sintomas hipocondríacos podem aparecer. Por outro lado, quando o medo de doenças é absolutamente inquestionável, podemos estar diante de um delírio hipocondríaco, que é uma psicose, outra categoria psiquiátrica.

Quando é hora de procurar ajuda médica?
Tudo dependerá da intensidade dos sintomas. Para o paciente, seu comportamento é justificável. Mas, às vezes, ele mesmo percebe que está se prejudicando. É comum que alguém do círculo familiar perceba os excessos e sinalize. Pode acontecer que um médico mais atento identifique o problema. Nos casos mais graves, o psiquiatra é o especialista indicado para tratar a doença, porém, na maioria das vezes, o paciente não aceita essa opção. Afinal, ele se sente “doente do corpo, não da cabeça!” Assim, o profissional mais próximo do paciente, que pode ser o clínico geral, é fundamental.

Medo e crença de estar gravemente doente são os sintomas centrais da hipocondria. Mas outros sinais, como buscar serviços de saúde repetidamente, podem aparecer

Qual é o limite entre o desejável cuidado com a saúde e a hipocondria?
Cuidados com o próprio corpo são essenciais para nossa preservação. Os que ignoram completamente os sinais emitidos pelo organismo correm o risco de adoecer. Entretanto, quando o cuidado é exagerado, a hipocondria passa a permear toda a vida da pessoa e ela viverá em função disso.

Hipocondríacos estão expostos a quais riscos?
Talvez o maior deles seja investir grande parte da energia na busca de algo imaginário. Relacionamentos e trabalho ficam em segundo plano. Some-se a isso o sofrimento da pessoa e dos que lhe estão próximos. Há ainda o estabelecimento de um mal-estar na relação médico-paciente, a solicitação de exames desnecessários e arriscados, bem como cirurgias questionáveis, cujas causas são a insistência do paciente e a resposta inadequada do médico. Por outro lado, testes importantes podem ser negligenciados. A verdade é que, como qualquer outra pessoa, o hipocondríaco pode adoecer. Outro perigo é a automedicação, mas ressalvo que o temor da ação dos fármacos inibe muitos desse impulso. E em um nível mais amplo, incluo os gastos extras para o sistema de saúde.

A recusa em se medicar é considerada um distúrbio?
Existem pessoas que ignoram as próprias necessidades. E isso pode acontecer em uma atitude onipotente do tipo: “Essas doenças não me atingem”. Na hipocondria, o indivíduo vivencia seu corpo como doente, estragado, fatores que causam angústia e sofrimento constantes. Há casos em que o bem-estar não pode ser alcançado por culpas inconscientes, e o próprio indivíduo não se dá conta disso. É como se estivesse presente um aspecto masoquista, no qual existe uma imposição de ter de tolerar o sofrimento e, para fazê-lo, prevalece a recusa aos tratamentos e às medicações.

Há algum tipo de classificação da doença?
O quadro de hipocondria, assim como outros quadros psiquiátricos, pode apresentar diferentes graus de comprometimento. Existem pacientes que, apesar dos seus medos e receios, conseguem manter seus relacionamentos, vínculos sociais e até alguma atividade profissional. Porém, há quadros em que o todo está comprometido por causa da gravidade da doença. Entre um polo e outro ocorrem manifestações clínicas e consequências variadas. Existem também casos de hipocondria transitória, geralmente relacionados a situações estressantes. Destaco, ainda, situações em que o paciente não se dá conta do exagero das suas preocupações, a chamada hipocondria de insight pobre.

Como é feito o tratamento?
Casos menos graves podem ser conduzidos por clínicos gerais que tenham tolerância e disponibilidade. E os médicos devem perceber que, muitas vezes, as queixas repetidas encobrem angústias que os pacientes não conseguem exprimir. Por isso, eles devem reservar algum tempo para ouvir o paciente, tendo o cuidado de não fazer encaminhamentos desnecessários, nem solicitar exames exaustivamente. Casos mais complexos requerem atuação de especialistas (psiquiatras e psicólogos). A abordagem terapêutica inclui psicoterapia e, eventualmente, medicações. A psicoterapia tem papel importante, pois é o recurso que pode promover mudanças no funcionamento psíquico. Não existe medicação específica para hipocondria. Quando existem sintomas depressivos associados, os antidepressivos se mostram bastante úteis. Diante da preponderância de ansiedade, ansiolíticos ajudam desde que se evitem dependências pelo uso prolongado.

Há cura para a doença?
O curso da hipocondria tende a ser crônico e flutuante, existindo, porém, indicações de que 1/3, ou até metade dos pacientes, apresente melhora significativa. Aqueles que se dispõem ao tratamento (psicoterapia e eventualmente medicações) podem obter melhora, em graus diferentes. E isso se dá como consequência de avanços mentais que permitem identificar e expressar conflitos psíquicos em termos psíquicos, e não mais em termos somáticos, como antes. Isso pode fazer uma grande diferença em suas vidas.

Janaina Resende Viva Saúde